Quando Pedro tinha dois anos, sua mãe, Rachel Botelho, percebeu algo que não era comum para a idade dele. “Apenas balbuciava e não falava. No parquinho, eu via que ele não estava se desenvolvendo como as outras crianças. Começou a perder habilidades, como dar tchauzinho, e ficou muito sério”, lembra.
O diagnóstico de autismo, transtorno que afeta 2,4 milhões de pessoas no Brasil, segundo dados do Censo Demográfico 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na sexta-feira (23), veio após uma maratona de exames com neurologista e pediatra.
Hoje, aos 16, Pedro tem nível 3 de suporte — classificação que indica o grau de apoio que uma pessoa precisa para lidar com as dificuldades relacionadas ao Transtorno do Espectro Autista (TEA) —, e necessidades complexas de comunicação.
Professora da rede pública de ensino do DF, Rachel, formada em Psicologia e Pedagogia, se desdobra para manter um plano de atendimento pedagógico e terapêutico para o filho, que estuda em uma classe especial dentro de escola regular, na Florida, Estados Unidos.
“Fora da sala de aula, estamos investindo em comunicação e em habilidades de vida diária. Mas é difícil encontrar profissionais que trabalhem com adolescentes e com o nível de suporte do meu filho”, diz. Segundo ela, os serviços desaparecem à medida que a criança cresce. “Muitos profissionais não presumem capacidade, e mantêm as mesmas atividades. Infantilizam”.
APOIO MÍNIMO — Outro problema é a falta de trabalho interdisciplinar. “A família, normalmente a mãe, é quem faz a ponte entre os profissionais. A escola pede ajuda, mas não é receptiva às sugestões de profissionais externos, que, por sua vez, não pensam em estratégias aplicáveis ao contexto escolar. Isso gera mais demanda para educadores num sistema já sobrecarregado”, lamenta.
Uma das necessidades de Pedro, a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), que inclui métodos que podem ajudar as pessoas incapazes de usar o discurso verbal para se comunicar, também virou um entrave para o desenvolvimento de processos cognitivos. “Desde pequeno procurei profissionais nessa área. Ainda encontro dificuldade, falta formação adequada”, pontua Rachel.
Apesar de Pedro já ter sido atendido por especialistas da rede privada de saúde, a mãe aponta que o apoio é mínimo. “Cada dia é mais difícil encontrar profissionais dispostos a atendê-lo. Oferecem o mínimo. Muitas vezes, só para constar que é atendido”.
Rotina de negligência
A técnica de enfermagem Lívia Nogueira Dutra, 42 anos, também vive uma rotina marcada por negligência. Mãe de João Gabriel, de 9 anos, Lívia indica que o diagnóstico de autismo do filho só veio aos três anos, após avaliação psicológica e muita insistência junto ao pediatra. “Desde pequeno, ele tinha o desenvolvimento atrasado. Sempre questionei o pediatra até que, com três anos, ele encaminhou para o neuropediatra e, com a psicóloga, fecharam o diagnóstico”.
João Gabriel Nogueira, 9 anos, está há seis anos diagnosticado com TEA
O acesso ao tratamento na rede pública, segundo a profissional de saúde, é inviável. “Não existe tratamento e terapia para autista na rede pública, e eu não tenho condições de pagar particular”. A escola, embora se autodenomine inclusiva, também falha, na avaliação de Lívia.
“A inclusão só existe no papel. É uma luta para garantir um professor auxiliar. Meu filho sofre discriminação por ser uma criança especial. Enfrentei dificuldades desde o acesso até o atendimento adequado. E isso não é só para o autismo, mas para todas as deficiências. As políticas públicas precisam deixar de existir só no papel”.
Sintomas e tratamento
O psiquiatra Bruno de Oliveira, que já atuou no Hospital Universitário de Brasília (HUB), detalha os principais sinais que podem indicar o TEA. “Envolvem dificuldade de interação social, como pouco contato visual e falta de interesse em brincar com outras pessoas. A criança também pode apresentar atraso na fala e movimentos repetitivos, como balançar o corpo ou bater as mãos. Esses comportamentos, quando persistem, merecem atenção e avaliação especializada”.
O diagnóstico, explica Bruno, é clínico, baseado na observação do comportamento e histórico de desenvolvimento. “O diagnóstico precoce é essencial, pois permite intervenções mais eficazes. Até porque, na fase adulta, o autista enfrenta rigidez cognitiva, o que dificulta a adaptação a mudanças e situações inesperadas. A dificuldade de comunicação pode comprometer relações no trabalho e levar ao isolamento social”.
O psiquiatra acrescenta que o tratamento farmacológico é indicado apenas para comorbidades como ansiedade, depressão, irritabilidade e distúrbios do sono, sempre sob avaliação individual, enquanto a psicoterapia pode auxiliar no desenvolvimento de habilidades sociais e adaptação.
Perfil do autista no Brasil
A prevalência é maior entre os homens (1,5%) do que entre as mulheres (0,9%): 1,4 milhões de homens e 1 milhão de mulheres foram diagnosticados com autismo por algum profissional de saúde. Entre os grupos etários, o maior número de casos está em crianças de 5 a 9 anos (2,6%).
Ao contrário do que muitos pensam, a taxa de escolarização da população com autismo (36,9%) é superior à observada na população geral (24,3%). Essa diferença é mais expressiva entre os homens: 44,2% dos homens com autismo estavam estudando, contra 24,7% do total. Entre as mulheres, o índice é 26,9% entre aquelas com autismo, ante 24% do total.
“Tal diferença se dá pela maior concentração da população com autismo nas idades mais jovens, principalmente de 6 a 14 anos, que possuem altas taxas de escolarização e concentram mais da metade da população de estudantes com autismo”, explica Raphael Alves, da equipe técnica do Censo Demográfico. É a primeira vez que há um número oficial de diagnóstico de autismo no País.
Alcance maior
Desde que a Lei 12.764/2012 instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA, o autismo deixou de ser um tema restrito a consultórios médicos e começou a ser debatido em espaços como as redes sociais. No Instagram, uma rede de ativistas, profissionais de saúde e pessoas autistas tem utilizado seus perfis para desmistificar o transtorno, compartilhar vivências e cobrar políticas públicas mais eficazes.
A jornalista e deputada estadual Andréa Werner (PSB-SP), mãe de um jovem autista, é uma das principais vozes desse movimento. Fundadora do blog “Lagarta Vira Pupa”, a ativista transformou a experiência pessoal em bandeira política. Nas redes, Andréa aborda temas como diagnósticos tardios, a realidade de mães atípicas e a urgência de inclusão escolar real. “Precisamos sair da lógica do capacitismo e construir um Estado que enxergue o autista como sujeito de direitos”.
Já a influencer Carol Souza, diagnosticada com autismo de suporte nível 2/3 e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), utiliza as redes para falar sobre sobrecargas sensoriais, hiperfoco, dificuldades na comunicação e os desafios de viver em uma sociedade que ainda não compreende as especificidades do espectro. “A gente não precisa se adaptar ao mundo o tempo todo. O mundo também precisa se adaptar a nós”, afirma em uma postagem.
Na fronteira entre ciência e prática clínica, o neuropediatra Paulo Liberalesso esclarece aspectos técnicos sobre o transtorno, como comorbidades frequentes (casos em que o TEA ocorre junto com TDAH ou deficiência intelectual), a importância da intervenção precoce e os principais marcos do neurodesenvolvimento infantil.
Em seus conteúdos, o médico sustenta uma abordagem baseada em evidências científicas e destaca que o autismo não é uma condição que “se cura”, mas, sim, que exige compreensão contínua e apoio ao longo da vida. “O autismo é múltiplo, diverso e merece ser compreendido para além dos estereótipos”.
Desafio em sala de aula
Para o psicólogo e professor de filosofia Lauro Rocha, docente da rede pública do DF, os alunos com Transtorno do Espectro Autista precisam de atenção especial. “Os estudantes com TEA lidam frequentemente com dificuldades sensoriais — sons, luzes, texturas — que podem ser exaustivas e interferir diretamente no aprendizado e na convivência. Um ambiente escolar não adaptado pode tornar a experiência profundamente desconfortável para eles”.
O mesmo vale para a comunicação. “Alguns alunos não falam, outros possuem uma linguagem formal, mas têm dificuldades para compreender contextos sociais, ironias e emoções. Isso cria um isolamento, pois o modo como esses estudantes se expressam e interpretam o mundo pode ser muito diferente”, contextualiza.
Lauro ressalta, ainda, que as dificuldades também são agravadas por atitudes equivocadas e desconhecimento de professores e demais colegas. “A escola precisa transformar suas práticas, não apenas para tolerar, mas para valorizar a neurodiversidade. O sistema educacional deve se reinventar, e isso inclui formação continuada para professores, flexibilização das avaliações e ambientes sensoriais acolhedores”.
Sobre a formação docente no DF, ele acredita que, apesar dos avanços, ainda há muito a fazer. “A Secretaria de Educação tem exigido avaliações e capacitação, mas a formação inicial ainda é muito generalista. A inclusão precisa estar no centro da formação, não como tema opcional”.
Centro de referência
Em 2 de abril deste ano, data marcada pelo Dia Mundial da Conscientização do Autismo, o governador Ibaneis Rocha anunciou a criação do primeiro Centro de Referência Especializado em Autismo do Distrito Federal. O espaço será dedicado ao atendimento de crianças, adolescentes e adultos com TEA, bem como de seus pais.
A primeira unidade será instalada no Plano Piloto, e há a previsão de outras duas, em locais a serem definidos. “O projeto tem como objetivo abrir ao menos um centro de referência em cada região do DF, para que possamos acolher todos da melhor forma possível”, garante Ibaneis.
O deputado distrital Eduardo Pedrosa (União), que luta pela causa autista na Câmara Legislativa, ressaltou que a criação dos centros especializados representa um marco. “Esse centro terá estrutura de acolhimento e profissionais para garantir que as terapias sejam desenvolvidas e que possamos ajudá-los a ter um acompanhamento. De certa forma, buscamos desafogar a questão dos laudos, que hoje as pessoas têm muita dificuldade”, disse.
Rachel Botelho reconhece que a iniciativa é válida, mas sintetiza o sentimento de muitas mães. “O que temos são promessas. Precisamos de ação, de atendimento qualificado, de políticas que não deixem nossos filhos para trás”.