Nathália Guimarães
A denúncia do youtuber Felca (Felipe Bressanim Pereira) sobre a presença de conteúdos que exploram menores de idade nas redes sociais, especialmente o Instagram, levantou um debate sobre a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. Num vídeo de 50 minutos, que já tem mais de 30 milhões de visualizações, ele mostra como o algoritmo pode direcionar o conteúdo para pedófilos.
Segundo a Safernet, ONG que promove a conscientização de como usar a internet de maneira livre e segura, em 2024 foram registradas 53 mil novas denúncias de crimes relacionados a imagens de abuso e exploração sexual infantil, contra 71.867 no ano anterior.
Apesar de ter havido menos denúncias em 2024, a Safernet destaca que a complexidade e a gravidade dos casos aumentaram, e mais casos têm sido investigados pelas autoridades brasileiras. Para o presidente da ONG, Thiago Tavares, um dos problemas é o que Felca chama de “algoritmo P”, que acontece quando os algoritmos das redes sociais são “educados” a recomendar conteúdo que promove adultização de crianças.
Tavares afirma que essa é uma falha do sistema, e que existem duas teorias para a forma que o algoritmo define o que será transmitido para o usuário. “Pode ser intencional, se a plataforma configurar o algoritmo para atribuir relevância a objetos que se assemelham ao órgão sexual masculino, por exemplo, em vídeos recomendados para crianças”. A outra teoria é que a língua portuguesa confunde o algoritmo. Dessa forma, ele colocaria o conteúdo infantil e as palavras em português na mesma “lista” de relevância.
FERIDA PROFUNDA – A psicóloga Leninha Wagner destaca que essa exploração da imagem nas redes sociais causa uma ferida profunda no desenvolvimento psíquico e emocional das crianças. E o ambiente digital, guiado por algoritmos, aumenta esse conteúdo, tornando-o persistente e difícil de apagar, o que prolonga e intensifica o dano.
“Do ponto de vista da psicologia clínica, trata-se de um processo de desproteção simbólica: a criança perde o direito fundamental de viver sua infância livre de demandas adultas e invasões que não é capaz de compreender ou consentir”, explica.
EROTIZAÇÃO PRECOCE – O psicólogo Matheus Karounis explica que a adultização infantil, um dos termos utilizados no vídeo de Felca, ocorre quando crianças são incentivadas a se vestir, se comportar e se expressar de maneira inadequada para a idade e estágio de desenvolvimento.
Entre os riscos para as crianças que passam por isso, ele cita transtornos de ansiedade, depressão, dificuldades de socialização, distúrbios de imagem corporal e até mesmo abuso sexual.
O especialista informa que há casos de erotização precoce de crianças e adolescentes que podem levar à baixa autoestima e sentimentos de vergonha em relação à sexualidade, além de dificuldade em estabelecer limites saudáveis e compreender a diferença entre o que é apropriado e inapropriado.
ALERTA PARA OS PAIS – Karounis destaca que a exposição feita pelos próprios pais nas redes sociais pode fazer com que a criança se veja como um objeto de consumo e admiração, em vez de um indivíduo único e valioso. “A criança pode sentir que sua privacidade e sua imagem foram violadas, gerando sentimentos de traição e perda de controle sobre sua própria identidade”,
O especialista alerta para sinais que podem indicar que uma criança está sendo exposta ou aliciada on-line. “Podem ocorrer mudanças repentinas de comportamento, como introversão, agressividade ou medo excessivo, além de evitar certos ambientes, pessoas ou atividades”.
Nesse contexto, a criança pode desenvolver interesse excessivo por temas sexuais, acompanhado de um vocabulário sexual inapropriado para a idade. “Geralmente, observa-se distúrbios do sono e da alimentação, dificuldades de concentração e queda no desempenho escolar”.
Na avaliação de Karounis, é possível proteger as crianças sem proibir totalmente o uso da internet. Ele defende três pontos: educação digital consciente, supervisão ativa e valorização da vida off-line.
PROTEÇÃO COMEÇA EM CASA – Para a dona de casa Nathalia Stefanie Dominhaki, de 30 anos, mãe de Ana Caroline, 12, e de Gustavo, 9, a proteção das crianças começa em casa. Natural do Recanto das Emas (DF), ela atualmente mora em Luzimangues, no Tocantins.
Ane Caroline, Nathalia, Gustavo e Vagner (marido). Foto: Arquivo Pessoal
Nathalia relembra que, em 2023, os filhos receberam o primeiro celular, que é compartilhado. “Eles usam só o WhatsApp para falar com familiares e fazer trabalhos da escola. Sempre pergunto o que estão fazendo e o que estão assistindo. Jogos on-line populares como Free Fire, Minecraft e Roblox são proibidos”, explica.
Ela também relata que o tempo de tela é monitorado, e os conteúdos precisam ter classificação livre ou, no máximo, até 12 anos. “A internet é muito atrativa e quanto mais você usa, mais difícil é se afastar. Tenho medo das influências e da exposição deles”, completa.
DISCUSSÃO CHEGA AO CONGRESSO – Menos de 24 horas após as denúncias de Felca, mais de 30 projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional. Entre as medidas, há propostas para criminalizar a adultização infantil, criar um cadastro nacional de infratores digitais e suspender o poder familiar de responsáveis que usam filhos para conteúdo sexualizado ou sugestivo.
Na terça-feira (12), o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), anunciou a criação de um grupo de trabalho para unificar as discussões. Os deputados terão 30 dias para apresentar um texto consolidado que garanta a segurança de crianças e adolescentes na internet.
SAIBA +
Especialistas reforçam que é importante denunciar conteúdos suspeitos. As queixas podem ser feitas no Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que recebe denúncias sobre violações de crianças e adolescentes tanto em ambientes on-line quanto off-line. Também é possível registrar denúncias no site oficial da SaferNet Brasil.