Em setembro, mês dedicado à conscientização sobre o Alzheimer, a chegada de um remédio revolucionário desperta esperança em mais de 1,2 milhão de pessoas que sofrem com a doença no Brasil. O Donanemabe, vendido pela farmacêutica Eli Lilly com o nome comercial Kisunla, retarda a progressão da perda cognitiva de pacientes com estágio leve ou moderado. Mas, seu alto custo é o principal entrave: o tratamento indicado de 18 meses pode custar até R$ 30 mil por mês e só está disponível na rede privada.
O Kisunla é um anticorpo monoclonal que age contra a proteína beta-amiloide [fragmento que, na doença de Alzheimer, acumula-se no cérebro e forma placas tóxicas entre os neurônios], podendo desacelerar a progressão do Alzheimer, especialmente em estágios iniciais. “É como limpar a ferrugem do motor cerebral antes que ele pare de funcionar”, compara o neurologista Arthur Jatobá, diretor científico da Associação Brasileira de Alzheimer no DF (Abraz-DF).
Arthur Jatobá, neurologista: “Diagnóstico precoce é crucial para evitar danos mais graves” – Foto: Arquivo Pessoal
Jatobá alerta para o que chama de “epidemia silenciosa” no país pelo aumento da população idosa. A doença, aponta o especialista, afeta cerca de 10% das pessoas acima de 65 anos, subindo de um em cada três casos após os 85. “O Alzheimer pode começar a se desenvolver até 20 anos antes de os sintomas se tornarem evidentes. Por isso, o diagnóstico precoce é crucial. Com exames, podemos identificar o problema na fase de comprometimento cognitivo leve e evitar danos mais graves”, garante.
Sedentarismo, diabetes, hipertensão, tabagismo, isolamento social e até perda auditiva não tratada são fatores que aumentam as chances de acometimento de Alzheimer, que se manifesta em diferentes tipos.
“Os casos mais comuns, em idosos, não têm característica hereditária clara, sendo influenciados, principalmente, por fatores ambientais e estilos de vida. Já Alzheimer pré-senil, que afeta pessoas antes dos 65 anos, geralmente é hereditário, ligado a mutações genéticas específicas”.
Alzheimer pré-senil
Essa diferenciação é fundamental para casos como o de Daniel Munchern, diagnosticado aos 53 anos com atrofia cortical posterior, uma variante da doença de Alzheimer. Morador de Porto Alegre (RS), o engenheiro tinha 50 anos quando os primeiros sinais começaram a aparecer, entre eles, falhas de memória, dificuldade para organizar tarefas e uma irritação sem precedentes.
Acostumado a lidar com problemas complexos, ele começou a se perder em coisas simples do dia a dia. “Ele trocava números em planilhas, esquecia compromissos importantes e saía de casa com o porta-malas do carro aberto”, conta a esposa Carla Pedroso.
O diagnóstico veio três anos depois, quando os sintomas se agravaram e uma investigação profunda foi feita no Instituto do Cérebro da PUC-RS. “Foi um choque. Ele tinha Alzheimer precoce, um tipo raro e agressivo que afeta especialmente a percepção visual e espacial”, lembra Carla.
Daniel e Carla na formatura do filho Davi – Foto: Arquivo Pessoal
Para Daniel, a descoberta foi “como o chão sumir sob meus pés”. “A adaptação não foi simples por conta da perda da própria independência. “Tive que parar de trabalhar, deixar de dirigir — algo que doeu muito. Sempre gostei de dirigir e adoro minha profissão”, relata.
A agressividade e as irritações constantes, que não eram comuns até o parecer médico, geraram muitos conflitos em casa. “Foi difícil, mas saber o que estava acontecendo trouxe respostas. Antes, não sabíamos o que era e nem como tratar”, conta a empresária.
ADAPTAÇÃO — De olho na segurança e na qualidade de vida, uma das primeiras mudanças foi a decisão de se mudarem para uma casa sem escadas. Hoje, o engenheiro se mantém ativo. Faz terapia semanal, exercícios físicos regulares e usa a medicação prescrita para retardar o declínio cognitivo e tratar os sintomas de depressão.
Com histórico de avós e tios que tiveram demência, Daniel teme pelo futuro do filho de 20 anos. Já Carla, apesar de preocupada com a predisposição genética, tenta se manter otimista. “Tentamos focar no que podemos controlar, dando amor e apoio. Não deixamos o medo paralisar nossa vida”.
O dilema da institucionalização
A aposentada Ana Maria França cuida da mãe, Consuelo, diagnosticada com Alzheimer aos 88 anos. A dificuldade em lidar com a doença começou dois anos antes, quando a idosa passou a esquecer pequenas tarefas, como pagar o IPTU, e demonstrar desorientação emocional e espacial.
“Quem percebeu primeiro foi ela mesma, que comparou sua condição com a da irmã, também diagnosticada”, recorda a filha, que foi a cuidadora principal até abril deste ano. “Foi exaustivo. Ela teve episódios de agressividade física e verbal, que me desgastavam emocionalmente”.
Ana Maria junto a mãe, Consuelo. “Enfrentamos críticas, mas hoje vejo que a institucionalização foi o melhor para a minha mãe e para mim”. – Foto: Arquivo Pessoal
A decisão pela internação definitiva de dona Consuelo, hoje com 95 anos, em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI), no Setor Sudoeste de Brasília, veio após a responsabilidade em casa ficar insustentável.
“Foi difícil e enfrentamos críticas, mas hoje vejo que foi o melhor para a minha mãe e para mim”, reconhece Ana Maria. “Apesar da doença avançada, ela mantém a memória afetiva, estimulada pelo contato frequente”.
“A gente faz o que pode”
Em Samambaia Sul, Osíris Reis, 45, cuida da mãe, Maria da Conceição, 70, diagnosticada com Alzheimer em 2018. Os primeiros sinais surgiram três anos antes, mas o diagnóstico foi dificultado pelo histórico psiquiátrico dela, que também convive com transtorno bipolar. “A causa mais simples explicava tudo. Todo mundo achava que era só o transtorno bipolar, inclusive os médicos”.
Aos poucos, os esquecimentos se agravavam, até que uma avaliação neuropsicológica confirmou o que já temia. A mãe se mudou de Goiânia para viver com ele e o companheiro, uma vez que passou a tomar Memantina, medicação específica para Alzheimer em estágio avançado. “Ela teve uma vida praticamente normal até dezembro de 2023. Mas sabíamos que essa fase ia ter fim”, lamenta Osíris.
Maria da Conceição, mãe de Osíris – Foto: Arquivo Pessoal
Conceição está acamada, com consciência flutuante (estado onde o nível de alerta e a clareza mental variam significativamente), problemas de deglutição, perda do controle dos esfíncteres e alucinações. Uma sonda gastrointestinal foi implantada para alimentação, e ela depende de suporte de oxigênio por causa de complicações respiratórias.
Para se dedicar integralmente a quem o colocou no mundo, Osíris abandonou a carreira no audiovisual ao perceber que mantinha o rendimento no trabalho. “Cuidar dela passou a ser o centro da minha vida. Eu e meu companheiro fazemos tudo sozinhos. Não temos condições de pagar cuidador”.
Mesmo pensando em arrependimentos, o filho acredita que fez o que estava ao seu alcance com o entendimento que tinha sobre a enfermidade. “Em 2015, quando os primeiros sinais surgiram, eu quis acreditar que não era Alzheimer. Foi uma reação humana”. A experiência foi tão marcante que, hoje, Osíris é diretor de comunicação da Abraz-DF, onde atua como ativista por melhores condições para cuidadores e pacientes.
Sociedade precisa se preparar
Na avaliação da psicogeriatra Jussane Mendonça, 47, compreender o Alzheimer exige mais do que associar a doença neurodegenerativa progressiva ao esquecimento. “Com o tempo, surgem sintomas comportamentais como ansiedade, insônia, irritabilidade, desconfiança excessiva e agressividade, além de perda da autonomia em atividades cotidiana. O idoso deixa de ser a pessoa que era. É uma transformação profunda da identidade e das relações familiares”.
Jussane elucida que, embora existam tratamentos que proporcionam melhora na qualidade de vida, ainda não há cura para a doença. As novas terapias em estudo, projeta, abrem caminhos promissores, mas ainda restritos. “Por isso, os cuidados paliativos, as Diretrizes Antecipadas de Vontade (DAV), em que a pessoa expressa seus desejos sobre os cuidados médicos e tratamentos que pode receber, além da organização do ambiente familiar, são tão importantes para preservar a dignidade do paciente”.
Jussane Mendonça, psicogeriatra: “O sofrimento não é só de quem adoece. A família precisa ser orientada e acolhida em todas as fases” – Foto: Arquivo Pessoal
A psicogeriatra chama a atenção, ainda, para a importância do suporte aos cuidadores, que muitas vezes enfrentam desgaste emocional intenso, especialmente diante da progressiva perda de reconhecimento por parte do paciente ou comportamentos agressivos. “O sofrimento não é só de quem adoece. A família precisa ser orientada e acolhida em todas as fases”, reforça.
Jussane Mendonça considera inadiável a implantação de políticas públicas que acompanhem o envelhecimento populacional. “Centros-Dia [serviços da Assistência Social que oferecem apoio e atividades diárias a pessoas idosas], instituições de longa permanência com qualidade, formação de profissionais e apoio financeiro aos cuidadores familiares são medidas urgentes. A sociedade precisa se preparar para a realidade do Alzheimer”.