A humanidade perdeu, no último 13 de maio, um dirigente político com características únicas. José “Pepe” Mujica, presidente do Uruguai de 2010 a 2015, entrará para a história da América Latina como um de seus heróis. Mas, para melhor compreender quem foi Mujica, é preciso entender a alma do povo uruguaio.
Esse pequenino país espremido entre os dois gigantes do continente foi a outrora “Banda Oriental do (rio) Uruguai”, região que desde o século XVII foi disputada pelos colonizadores espanhóis e portugueses. Como parte do Vice-Reino do Rio da Prata, tinha como destino ser mais uma das províncias da recém-proclamada Províncias Unidas do Rio da Prata (futura República Argentina). Ou seja, ser governada por Buenos Aires.
Mas seus parcos 70 mil habitantes tinham outros planos: aspiravam por autonomia. Recusada por Buenos Aires, constituíram um governo próprio em 1815, destituído em 1817, quando Montevidéu foi ocupada pelas tropas de Dom João VI.
Denominada Província Cisplatina, ficou sob o poder do Reino de Portugal, Brasil e Algarves e, após 1822, do Império do Brasil. A ocupação se prolongou até 1825, quando, após sucessivas rebeliões, expulsaram as tropas brasileiras e decretaram, em 25 de agosto, a independência do país, reconhecida por Brasil e Argentina em 1828.
FUTEBOL – Esse espírito aguerrido dos uruguaios, sua recusa em se deixar subjugar por Brasil e Argentina, é evidenciado pelo futebol. Primeiro campeão sul-americano em 1916, derrotando a Argentina em plena Buenos Aires; campeão olímpico em 1924, vencendo a anfitriã França por 5×1, e repetindo o feito em 1928 em Estocolmo, goleando a Alemanha por 4×1 e derrotando a Argentina na final; primeiro campeão da Copa do Mundo, em 1930, novamente derrotando a Argentina na final, e bicampeão em 1950, batendo os brasileiros no famoso Maracanazo.
Numa competição dominada pelos grandes países europeus (Alemanha, Itália, França, Espanha e Inglaterra) e sul-americanos (Brasil e Argentina), como explicar ser o pequenino Uruguai o único país a furar tal dominância? E em outras três vezes (1954, 1970 e 1990) só caindo nas semifinais. Ademais, venceu a Copa América em 15 oportunidades, só recentemente superado pela Argentina, com 16 conquistas, deixando o Brasil com 9 troféus.
PROGRESSISTA – Embora por quase dois séculos tenha sido governado por dois partidos das burguesias comercial e agrária (Colorados e Blancos), o Uruguai foi pioneiro no continente em ações progressistas, como instituir a lei do divórcio, em 1907; proibir o ensino religioso nas escolas públicas, em 1909; e promover a total separação entre Estado e Igreja, em 1917.
Todos esses fatos concorreram para a formação do cidadão Mujica. Inconformado com a injustiça social, foi, de 1966 a 1972, militante dos Tupamaros, quando foi preso, até o fim da sangrenta ditadura civil-militar uruguaia. Em 1985 formou o Movimento de Participação Popular (MPP), compondo a Frente Ampla (agrupamento de partidos de esquerda).
Em 1989 foi eleito senador e, em 2009, presidente. Com Mujica, foi instituído o direito das mulheres ao aborto, ampliados os direitos trabalhistas, as despesas sociais alcançaram 75% do orçamento público e a taxa de pobreza caiu para menos de 10%.
Após o fim da ditadura, colorados e blancos venceram as quatro eleições presidenciais de 1984, 1989, 1994 e 1999, sendo que nas duas últimas a Frente Ampla disputou voto a voto com os partidos burgueses, até que venceu em 2004 com Tabaré Vazquez.
Voltou a vencer com Mujica em 2009 e novamente com Vazquez em 2014. Perdeu em 2019 por parcos 37 mil votos para Lacalle Pou (Blanco), para voltar a vencer em 2024 com Yamandú Orsi. Ou seja, a esquerda venceu 4 das últimas 5 eleições presidenciais.
VIRTUDES – Mas os avanços nas políticas sociais e de direitos individuais e as sucessivas vitórias da esquerda não significam que a direita seja fraca no Uruguai. A burguesia comercial e agrária polariza uma parte considerável da numerosa classe média uruguaia.
Dos 3,5 milhões de habitantes, cerca de 1,9 milhão residem na capital Montevidéu e no departamento metropolitano de Canelones, e 1,6 milhão nas pequenas cidades e na zona rural do país. Se a esquerda predomina em Montevidéu – onde a Frente Ampla ganhou as últimas oito eleições locais – e em Canelones, a direita comanda os rincões do país.
O Uruguai deu ao mundo escritores como Eduardo Galeano, Mario Benedetti e Juan Carlos Onetti; músicos como Julio Sosa e Francisco Canaro, e o pintor Joaquín Torres Garcia. Mas deu, sobretudo, Pepe Mujica, um político que agregou virtudes, como integridade, apego aos valores humanitários, amor pela natureza, humildade, simplicidade, repúdio ao consumismo e desapego material.
Mesmo como presidente, continuou morando em sua chácara, usando seu fusca e frequentando bares e restaurantes populares. Quiçá sua conduta inspire milhões de seres humanos. Como me disse o filho de um amigo: Queria ter um presidente assim!